Segurança jurídica na geração distribuída: a análise da motivação no desmembramento de usinas

desmembramento de usinas

O segmento de geração distribuída no Brasil enfrenta um desafio significativo: a caracterização de supostos desmembramentos de usinas e geração distribuída. As decisões tomadas pelas distribuidoras de energia, muitas vezes apoiadas em critérios frágeis ou subjetivos, têm gerado um cenário de grave insegurança jurídica, prejudicando consumidores e empreendedores. Diante disso, é urgente que a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) estabeleça parâmetros claros e objetivos para a análise desses casos, a fim de garantir a isonomia e a previsibilidade regulatória.

A motivação do empreendedor como elemento central

O ponto fulcral na análise de uma suposta divisão irregular de centrais geradoras deve ser a motivação comprovada de contornar a norma. A própria ANEEL já sinalizou que o teste adequado consiste em verificar se a configuração do projeto teria sido diferente na ausência dos limites regulatórios de micro e minigeração distribuída.

Essa perspectiva permite separar arranjos artificiais, criados exclusivamente para frustrar a finalidade da norma regulatória, daqueles que possuem justificativas técnicas, econômicas ou operacionais legítimas. É comum, por exemplo, que restrições físicas do terreno, fases distintas de investimento, otimização operacional ou modelos de negócio específicos justifiquem a existência de múltiplas usinas próximas sem que isso configure irregularidade.

Assim, a análise não pode se reduzir a verificar apenas titularidade, contiguidade ou simultaneidade de pedidos. Esses fatores são indícios auxiliares, que só podem ganhar relevância se acompanhados de provas inequívocas de simulação.

O histórico regulatório: a rejeição de critérios amplos pela ANEEL

A robustez dessa interpretação restritiva é confirmada pelo histórico da Consulta Pública nº 51/2022, que debateu a regulamentação da Lei 14.300/2022. Na ocasião, a ANEEL chegou a propor a ampliação das hipóteses de vedação, sugerindo proibições à divisão de centrais que visassem “evitar ou diminuir o pagamento da garantia de fiel cumprimento”, “evitar o enquadramento no art. 655-L” (regra de transição) ou “usufruir de condições mais vantajosas aplicáveis às centrais geradoras de menor porte”.

Após receber contribuições que alertavam para o risco de punir divisões legítimas e gerar arbitrariedades, a Agência calibrou a norma. A redação final do art. 655-E da Resolução Normativa nº 1.000/2021 excluiu expressamente essas hipóteses amplas, mantendo apenas o núcleo histórico e legal: a vedação à divisão “para se enquadrar nos limites de potência instalada da microgeração ou minigeração distribuída”.

Pela interpretação a contrario sensu, se o regulador considerou e rejeitou ativamente outros critérios, estes não podem ser invocados pela distribuidora para caracterizar uma divisão irregular.

A presunção de boa-fé e o ônus da prova

A avaliação da motivação deve estar ancorada no princípio da boa-fé, pilar do ordenamento jurídico brasileiro. A boa-fé dos consumidores e empreendedores é presumida, cabendo à distribuidora o ônus de provar, de forma inequívoca, a ocorrência de fraude ou simulação.

Nesse sentido, o voto do Diretor Fernando Mosna, de 24 de setembro de 2024, foi claro ao afirmar que não existe presunção absoluta de divisão irregular: cada caso deve ser analisado de acordo com seus indícios e evidências.

A distribuidora que alega irregularidade não pode se basear apenas em suposições. Com feito, o simples desmembramento territorial ou a coincidência de titularidade, por exemplo, não bastam para caracterizar fraude à lei. É indispensável apresentar evidências concretas de dolo, sob pena de violação ao devido processo legal e à segurança jurídica.

Critérios relevantes para uma avaliação justa

A avaliação da motivação deve considerar fatores objetivos e verificáveis, tais como:

  • Justificativas técnicas e econômicas para a divisão do projeto;
  • Separação geográfica e operacional clara entre as plantas;
  • Titularidade e independência efetiva das unidades consumidoras;
  • Temporalidade e contexto das solicitações de acesso;
  • Modelo de negócio e estrutura organizacional do empreendedor.

Além disso, deve ser aplicado o teste contrafactual: se todas as regras do SCEE permanecessem inalteradas, exceto os limites de potência, a configuração do projeto ainda faria sentido? Se a resposta for positiva, não se pode falar em arranjo simulado.

É igualmente essencial destacar que coincidências como a indicação do mesmo responsável técnico, instalador ou desenvolvedor, por si só, não se presta a comprovar uma tentativa de simulação. A repetição de prestadores de serviço costuma decorrer de razões legítimas, como eficiência, expertise ou disponibilidade de profissionais qualificados na região. É bastante comum, inclusive, que determinados prestadores de serviços implementem diversos projetos simultaneamente em uma mesma área geográfica.

 

Respeito à autonomia privada e à liberdade de associação

A análise da motivação também deve respeitar os princípios constitucionais da autonomia privada e da liberdade de associação. Distribuidoras não podem impor limites que obriguem titulares distintos a se associarem em um único projeto apenas por estarem situados em áreas próximas.

Cada empreendedor tem o direito de organizar seus negócios de forma independente, desde que atendidos os requisitos legais e técnicos, sem sofrer presunções automáticas de fraude.

A Lei nº 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica) reforça esse entendimento ao:

  • consagrar a presunção de boa-fé do particular (Art. 3º, V);
  • vedar o abuso regulatório que imponha restrições indevidas à livre iniciativa (Art. 4º, VII).

Esses dispositivos oferecem proteção contra interpretações arbitrárias e garantem ambiente propício à inovação e ao investimento em geração distribuída.

A necessidade de uma regulamentação clara e detalhada

A ausência de critérios objetivos fomenta a insegurança jurídica e decisões inconsistentes. Uma regulamentação mais clara por parte da ANEEL é indispensável, contemplando:

  • Definição clara do que caracteriza uma “divisão irregular”, estabelecendo critérios objetivos e mensuráveis.
  • Estabelecimento de um protocolo para análise da motivação do empreendedor.
  • Definição clara dos prazos e procedimentos para apresentação das justificativas.
  • Estabelecimento de sanções proporcionais em casos comprovados.
  • Definição critérios para avaliação operacional entre projetos próximos.
  • Diretrizes claras sobre temporalidade das solicitações

Esse processo deve ser participativo, envolvendo distribuidoras, empreendedores e associações setoriais, para garantir equilíbrio e legitimidade.

Conclusão

A análise da motivação do empreendedor, guiada pelo princípio da boa-fé, deve ser o eixo central da avaliação de supostos casos de desmembramento de usinas. O ônus de provar a má-fé recai sobre quem acusa, e não se pode presumir a intenção de contornar a norma a partir de indícios isolados.

Práticas comerciais de desenvolvedores ou coincidências de fornecedores não interessam à análise regulatória, cujo objetivo é apenas evitar o desvirtuamento dos limites de potência. O foco deve permanecer na existência de simulação comprovada, e não em interpretações excessivamente restritivas.

Esse cenário exige que os titulares se apoiem em análises jurídicas qualificadas, capazes de estruturar projetos sólidos e antecipar questionamentos. Um posicionamento técnico consistente é a melhor defesa contra negativas indevidas de conexão ou acusações infundadas de divisão irregular.

Somente com uma abordagem equilibrada, que respeite os direitos dos empreendedores e ofereça critérios claros, será possível superar a atual insegurança jurídica. A consolidação de um ambiente regulatório estável é fundamental para a expansão da geração distribuída — um segmento vital para a competitividade energética e para a transição sustentável do Brasil.